link

http://my.mail.ru/video

link

http://my.mail.ru/video

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Internet: aproximando quem está longe, distanciando quem está perto 27/09/2016  hora 11.44
                             
Antes que alguém me incomode com as suas críticas comezinhas, adianto que a pérola que dá título a esta crônica não é da minha autoria (os fominhas da internet já a conhecem muito bem). Por sinal, eu a li num e-mail enviado por um amigo próximo que, ironicamente, se encontra deveras longe: o sujeito é pesquisador e caminha pelo trajeto de Santiago de Compostela, municiado com o peculiar espírito da pesquisa e da descrença na raça humana, imbuído em descobrir um ou mais sentidos que tornem o viver mais palatável. Ele já teve muito dinheiro, muita solidão, muito desamor e um câncer de sinuca de bico (aparentemente, sem saída). Que eu saiba, até o momento, moeu dois pares de tênis pelos caminhos tortuosos e pedregosos das suas dúvidas existenciais.
Em termos de convivência social, talvez estejamos capengando pelo período mais chato da História da Humanidade. Um ermitão do século 18 conversando com um alce velho numa montanha gelada talvez fosse um exemplo de comunicação mais promissor entre dois seres vivos, do que o que temos hoje. O monturo de informações e desinformações a invadir as telas dos computadores e dos smartphones é tão avassalador quanto frívolo. Mais espertos que os telefones são os índios comancheiros que abandonaram os sinais de fumaça e hoje se comunicam com a utilização apenas das bocas e das gotículas de cuspe.
Em tempos de tempestades de blogs, em que cada um se julga a cereja do bolo da internet, no que tange à notoriedade sobra irrelevância. Em matéria de engajamento neste efeito manada digital, sinto-me meio leproso, embora dê as minhas cutucadas no teclado. Os meus pares simplesmente não concebem como é que até hoje eu não tenha aderido ao feice ou a outra pujante rede social da internet.
Companheiros desta ignóbil caminhada terrena: mal tenho tempo de ler as duplicatas e multas de trânsito que chegam aos borbotões pelos correios, quem dirá, saber das iniciativas auto-promocionais de sujeitos que alardeiam suas filantropias pilantras. Também não me interessa saber que o perfil de fulana mudou porque está de namorado novo (certamente contrairá também um novo tipo de herpes vírus); ou se cicrano perdeu mais cinco quilos desde que foi submetido a uma cirurgia bariátrica. Podem procurar: há tanta gordura entremeada no cérebro dessa gente que haja lipoaspiração para se dar um jeito.
Outro dia fui jantar na praça de alimentação de um shopping (confesso que, depois de devorar pratadas de doce de leite com figo, este é um dos meus piores defeitos) e, enquanto aguardava que uma corneta e um display luminoso anunciassem que o meu pedido já se encontrava à disposição no balcão, eu percorri com os olhos o salão para verificar em quantas mesas havia pessoas acessando a internet pelo telefone celular. Pasmem, queridos dementes associados: em todas as mesas havia ao menos uma pessoa se entretendo com o vício do diálogo quilométrico silencioso. Em várias delas, todos os ocupantes se ocupavam em ocupar as redes sociais com aquele comportamento, a meu ver, extremamente ocioso e anti-social.
“O anti-social aqui é você”, reclamam amigos e familiares. Aliás, tenho perdido coquetéis, festas, gratificações e velórios pela falta de engajamento às tribos virtuais. Ao que parece, poucos se dispõem a gastar papel e saliva para formalizar convites. Um simples telefonema já bastava para anunciar um batizado, uma morte. Aliás, faço aqui um adendo dos mais irrelevantes e fora do contexto: às vezes, se diverte mais num cemitério do que num salão do country clube. Não riam. Eu falo sério.
Certa vez compareci a um funeral tão animado que quase se esqueceram de enterrar o velho comendador. Vocês sabem, às vezes, a morte conserta muita coisa: livra o próprio falecido das obsoletas e decrépitas relações com a parentalha, paga as dívidas dos herdeiros, resgata orgasmos aos casais à beira do divórcio. Mais do que crer no Altíssimo, é fundamental acreditar que o dinheiro não somente traz felicidade, como une as pessoas. Já perceberam o quanto os ricos estão sempre risonhos e bem entrosados nos seus banquetes regados a uísques 12 anos e adultérios de todas as idades?
Outro exemplo de exagero digital, da matança desenfreada do tempo: enquanto não atingia o orgasmo, a frígida decana postava às amigas fotos inéditas da última cirurgia plástica que fizera com o doutor maníaco da moto-serra. Neste ínterim, o esposo ejaculava treponemas na sua vagina semi-nova, recauchutada, ao passo que o pessoal curtia as fotos, escrevia mimos, tornando o teto daquela suíte menos branco que o habitual, e a sua teta operada mais empinada que a original. Estou sendo ácido demais? Vai ser cruel e amargo assim lá no Haiti? É por aí, caras pálidas. Reajam! Larguem os seus ai-fones e caiam dentro!
Tem gente que perdeu, não só a virgindade, mas a compostura e alguns gramas de massa cinzenta, por conta dos excessos e desmandos da comunicação virtual. Nunca antes na história das cadeirinhas colocadas sobre as calçadas defronte aos portões das cidadezinhas interioranas, fez-se tanta fofoca. Mais que uma esposa infiel, a difamação come solta na internet. Efeito privada de rodoviária: fala-se muita titica. Especula-se à vontade. Mente-se à beça. Caiu na rede, deve ser verdade. Aos olhos dos incautos, dos imbecis e dos profanos, a internet praticamente tornou-se, se não uma Penthouse ou uma Hustler, uma verdadeira bíblia.
Ajoelhou, tem que rezar? Não. Aqui não, cabritinhos. Aqui vocês berram. Não vou me adaptar. Falo com a autoridade de quem demorou 12 anos para fumar um cigarro, 16 para ficar bêbado, 18 para perder a virgindade, e 05 para trocar uma televisão de tubo de 29 polegadas por uma de tela plana modelo LED. Já traçaram o meu perfil? Então ponham aí no feice de vocês, já que eu não possuo nenhum.
==========================================================================
Deus perde a paciência e, finalmente, esclarece à humanidade o grande mistério da vida
                              
“Já estou de saco cheio com vocês”, foram com estas palavras de desabafo que Deus, finalmente, apareceu para esclarecer à humanidade o grande mistério da vida. Sim. Deus existe, meus caros. E creio que todos tenham acompanhado a sua inédita aparição por meio das rádios, jornais e televisão. Com o adjutório dos principais líderes religiosos do planeta, Deus convocou a imprensa mundial para uma entrevista única, definitiva e jamais sonhada nem mesmo pela mais crente criatura humana.
Valendo-se de vozes no meio da noite e visões oníricas, Deus requisitou aos seus multiplicadores de fé que arrebanhassem os mais renomados repórteres, âncoras televisivos, apresentadores de programas de auditório, além de líderes políticos de todas as nações, para uma esclarecedora entrevista coletiva que ocorreu, não por acaso, no Corcovado, aos pés do Cristo Redentor.
Muitos países deixaram de enviar representantes legais, temendo que se trataria de mais uma espécie de pegadinha, uma piada de extremo mau gosto, senão um golpe de mestre engendrado por algum mentecapto ateu suicida interessado em implodir o monumental cartão postal carioca, num dos maiores atentados da história desde a destruição das torres gêmeas por Osama Bin Laden.
Deus deu aos Homens apenas 72 horas para que todas as providências fossem tomadas, do ponto de vista técnico-operacional, a fim de que o Brasil recebesse a volumosa legião de perguntadores. Em tempo recorde, centenas de pedestais com microfones foram instalados no Corcovado, a fim de servirem aos questionamentos dos convidados. Não houve tempo nem espaço para que os organizadores brasileiros subissem até o morro tantas cadeiras a fim de sentarem tantas pessoas. A multidão permaneceu em pé mesmo durante as sessenta e três horas de entrevista, tempo considerado ínfimo para espairecer tantas dúvidas que há séculos permaneciam entaladas na garganta da humanidade.
Deus não apareceu em carne e osso, como se esperava. Valendo-se do primeiro homem barbudo e maltrapilho que avistou pela frente mendigando nas redondezas do Cristo, num fenômeno de incorporação dos mais instigantes, ele falou através da boca do renegado que permaneceu em transe durante todo o tempo.
Num rápido preâmbulo, Deus explicou que a gota d’água que o levara a descer dos céus e acabar com tantas lamentações, especulações, acusações, lucubrações, palpites e até injustiças a respeito da sua existência ou não, foi o desmoronamento daquela escola na cidade de Brejinho das Vacas que matou dezenas de crianças pobres, levando milhares de pessoas ao redor do mundo a acenderem velas, chicotearem os próprios lombos e a dizerem “Deus quis assim... Deus quis assim...”.
Um titubeante monge tibetano: E Deus queria assim?
(Nota: o mais incrível é que cada qual falava em sua língua pátria e era compreendido pelos demais, um fenômeno incrível jamais verificado. Pela evidente falta de caracteres, das sessenta e tantas horas de entrevista, pincei as perguntas que considerei as mais relevantes e esclarecedoras, a fim de publicar neste ilibado veículo de comunicação...)
Deus: Se alguém pula de um prédio, Deus quis assim. Se um ônibus lotado erra a tangente da curva e capota, Deus quis assim. Se o pequeno nascituro padece mortalmente no canal do parto, vitimado pela estreiteza óssea da pélvis materna, Deus quis assim. Se um senil canceroso finalmente é consumido pelo tumor, Deus quis assim. Se um vulcão acorda e dizima com lava e rochas flamejantes uma pequena aldeia sonolenta, Deus quis assim. Se um centroavante erra um pênalti, Deus quis assim. Se alguém perde o emprego ou perde dinheiro ou perde as estribeiras, Deus quis assim. Ora, não se trata de querer ou deixar de querer. Estas coisas simplesmente acontecem.
O Papa visivelmente comovido: Por que tu escolheste o corpo deste pobre homem maltrapilho para, por meio dele, falar ao teu povo? Como será a tua imagem, a cor de teus olhos, o tom dos teus cabelos...
Deus: Simplesmente não dá, meu caro. Eu não caibo aí entre vocês. Verdadeiramente, todo o planeta nada mais é que um viveiro, uma espécie de câmara a vácuo, um meio de cultura, um laboratório em que estudamos todas as formas de vida existentes. Aquilo que vocês denominam Universo, Infinito, realmente existe e é de lá que eu falo neste exato instante, abrindo o jogo de uma vez para sempre, cessando todas as dúvidas. Da mesma forma que vocês estudam os micróbios e outras criaturinhas invisíveis a olho nu, nós estudamos o vosso comportamento. Sim. Vocês ouviram bem. Nós. Há vários de mim, milhares, milhões.
Uma mulher não identificada: Afinal, o senhor é um homem ou uma mulher?
Deus: Nem homem, nem mulher. Nós não temos sexo. Nós não procriamos. Nós sempre fomos, somos e seremos, entende? Não, eu não espero que você esteja me entendendo...
Um cientista renomado: Existe ou não existe vida após a morte?
Deus: Pergunte às suas bactérias, doutor. O que acontece a elas quando o senhor ministra potentes antibióticos. Para onde vão as almas destes microrganismos?
Uma atéia quase convicta: Por que, então, você e os seus iguais demoraram-se tanto a esclarecerem estes fatos gravíssimos e essenciais à humanidade? Quanta maldade. Com todo respeito, senhor: quanta sacanagem!
Deus:  Eu lhe respondo com outra pergunta, cética e desprezível criatura. Como você, que se julga tão convicta, espera viver o final de seus dias após esta relevante e inimaginável revelação? E mais: não fui eu quem começou esta estória de Deus, diabo, céu e inferno. Isto partiu de vocês,  dos seus ancestrais, desde os primórdios, a partir do momento em que os Homens dominaram a fala e começaram a cultuar o sol, a lua, o fogo, o trovão e tudo o mais que fosse cientificamente inexplicável.
Presidente dos Estados Unidos da América: Há tempos está escrito em nossas cédulas de dólar que “Em Deus nós acreditamos”. Portanto, apesar de termos massacrado tanta gente em incontáveis guerras sanguinárias, como você e os seus companheiros universais veem o papel do meu país no contexto mundial. Algum dia na vida, nossos foguetes sequer passaram perto do local de onde o senhor fala neste instante. Seria factível instalarmos uma base americana no seu mundo?
Deus: Se Deus quiser — e nós queremos, pode ter certeza disto  jamais permitiremos que qualquer criatura da Terra deixe este habitáculo e lance sementes noutros recantos do Universo. Não temos antibióticos, mas dispomos de outras formas bastante eficazes para frear o ímpeto humano, como as pestes, as calamidades naturais, isto sem contar com a mortandade a que você se referiu, Presidente.
Curandeiro de uma tribo aborígene africana: Vamos mesmo morrer se continuarmos derrubando árvores, empestilhando a atmosfera e poluindo rios? É possível ao senhor e aos seus iguais refazer todas as coisas num simples estalar de dedos?
Deus: Eu já disse e repito. Nós não criamos nada. Vocês, assim como nós, simplesmente existem e pronto. Há milhares de anos vocês têm sido observados e estudados. De fato, reconhecemos que houve muita evolução científica ao longo da história. Entretanto, os danos cotidianos que uns infligem aos outros e ao meio ambiente parecem muito mais relevantes. Se dependesse só de mim, já tinha enviado o seu globo para o expurgo. Mas fui voto vencido.
Um pastor-alemão: E quanto a Jesus?
Deus: Jesus foi um homem pacifista, diferente, assim como Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce, Francisco de Assis e tantos outros. Foram espécimes que tentaram viver em prol da coletividade, embora, sem convencer os seus pares.
Eberth Vêncio, enviado especial desta publicação nonsense: Agora que está tudo praticamente esclarecido, a vida na Terra não terá perdido toda a graça? O que será feito dos homens, das religiões, dos sacrifícios, das peregrinações, dos dízimos, dos sonhos dizimados, e das aplicações bancárias das principais entidades religiosas do planeta?
Deus: Eu já esperava esta petulante pergunta. A verdade é esta que eu lhes trouxe por meio da garganta deste homem faminto miserável, há tempos requisitada pelos seus e pelos que já sucumbiram no decorrer da história. Teoricamente, como foi dito, a verdade deveria vos libertar. Aí está ela. Chupem-na. E passar bem.
==========================================================================
O aborto e a institucionalização do homicídio
                             
Os Estados Unidos da América, país mais rico e desenvolvido do nosso planeta, permite a prática do aborto na maioria de seus Estados. “In God, we Trust”, o mesmo Deus que estabeleceu em seu quinto mandamento “Não Matarás. Um erro grosseiro, no entanto, é conectar a defesa ao direito à vida com a religião. A religião por si só já possui paradoxos demasiados para serem resolvidos. A questão da vida não é e não pode ser tratada como um paradoxo. Esse direito deve ser defendido em todas as instâncias do conhecimento porque ele é o único elo que nos une como seres humanos e que nos impede de recairmos nos nossos desejos mais recônditos de barbárie.
O que é a vida para você caro leitor? Como você definiria a existência de um novo ser? Presumo que você esteja em um momento de descanso ao se deparar com esse texto e não queira parar para pensar nessas coisas. O mundo anda muito corrido. Existem coisas mais importantes a fazer, ou quiçá mais prazerosas como bisbilhotar o Facebook do amigo do trabalho, assistir ao noticiário cochilando no sofá, tomar umas e outras com os amigos. Mas veja bem caro leitor, isso tudo só faz sentido, ou só é possível porque você está vivo. Será que não seria interessante parar por um instante para pensar naqueles que não terão oportunidade de fazer essas coisas tão prazerosas simplesmente porque não viverão?
Discutir o que é um ser vivente parece ser motivo de muitas contradições. Um assunto que não nos parece assim tão complicado. Após a união do gameta feminino (óvulo) e masculino (espermatozóide) temos –— vualá –— a formação do zigoto. O ovo. Nesse ovo está contido uma mistura totalmente nova de material genético do pai de da mãe que uma vez instalado no útero da mulher se desenvolve até seu nascimento, crescimento, envelhecimento e morte (quando possível que o ciclo todo se cumpra). Discute-se que até o terceiro mês esse “amontoado de células” não tem conexões neurais suficientes para ser considerado um indivíduo humano. Querido leitor, será que os cientistas conseguiriam precisar em que exato momento essas conexões ocorrem para que possamos deixar de considerar o novo ser como um “amontoado de células” e passar a chamá-lo de ser humano? Existe algum ser humano que não tenha sido um pequeno ovo para podermos desconsiderar totalmente essa fase como pertencente ao desabrochar de uma vida?
Apesar dessa questão nos parecer muito simples, ainda assim ela tende a ser relativizada na sociedade. O aborto é visto como uma opção porque um ser que não tem voz não pode lutar por seus direitos. Um ser que ainda não se formou inteiramente, não é um ser. Um ser que não pode ser visto, não pode se fazer respeitar, ou até pode, mas somente se os pais estiverem afim de fazê-lo. A questão do aborto hoje está estritamente atrelada aos direitos políticos e sociais da mulher e não com respeito ao ser humano em si. Os direitos das mulheres são muito importantes, isso é claro, mas me parece que a sociedade esqueceu de discutir os seus deveres. Discutimos atualmente várias questões, a respeito da política, da economia, do clima, sempre visando a sobrevivência da espécie, mas não nos escandalizamos quando uma mulher vai a uma clínica e faz um aborto.
A natureza construiu o corpo feminino para que pudesse carregar a vida de um outro ser. É dentro dela que o ser se forma e é nela que ele vai retirar os primeiros nutrientes essenciais para o seu desenvolvimento. A mulher parece ter se esquecido desse privilégio. Talvez hoje o veja até mesmo como um transtorno. Na sua ânsia de se equiparar ao homem a mulher esqueceu das suas singularidades. Talvez tenha invertido os valores. O que antes era um privilégio –— gerar uma vida –— hoje é um transtorno negociado politicamente para resolver o problema de mulheres vitimadas por crimes como o estupro, pela pobreza ou pura e simplesmente pela inconveniência de aceitar as responsabilidades da vida. A mulher hoje na maioria dos casos, atua como vítima da sua própria inconsequência. E isso não é essencialmente uma característica feminina da sociedade atual. Os homens também estão interessados em se verem livres de filhos indesejados. Os homens, que ainda são detentores do poder político no mundo, fazem do aborto, material de barganha em campanhas políticas e deixam de atuar na promoção da educação que resolveria a quase totalidade dos problemas humanos. Estamos todos conectados –— homens e mulheres –— por um emaranhado de linhas invisíveis que faz com o que relativismo perante a vida faça do aborto uma prática legal. 
Em alguns Estados dos Estados Unidos discute-se atualmente uma lei a respeito das condições para a prática do aborto. A mãe, antes de desfazer-se do feto, é obrigada a ouvir o coração do bebê, ou submetida a um ultrassom que mostra imagens do feto. Ativistas pró-aborto e militantes da esquerda protestam dizendo que tal lei é humilhante para as mulheres. E é mesmo. A situação é bizarra. Como você pode obrigar uma mulher a olhar para o próprio filho seja ele um “amontoado de células” ou um ser humano já formado antes de abortá-lo se a própria lei considera que tal ato não fere os princípios dessa sociedade? Não faz sentido. Permitimos que você retire o ser do seu útero, mas antes você deve ouvi-lo (as batidas do coração) e vê-lo (a imagem na tela da televisão) para talvez repensar sua decisão. A sociedade já tomou a decisão de não considerar o ato como um crime contra a vida. E essa é a sociedade mais avançada que temos hoje no nosso planeta.
Todas as nossas atitudes enquanto seres sociais estão conectadas. Fica difícil de perceber isso porque vivemos nossas vidas preocupados com as amenidades do dia-a-dia. Quem é que se importa com essas discussões aborrecidas quando temos tantas parafernálias eletrônicas para nos entreter depois de um dia estressante de trabalho? E que me importa se um ser humano é impedido de se desenvolver no útero de uma mulher que eu nem conheço se eu estou aqui vivo? O papel da mulher para o coletivismo é muito mais importante do que ela imagina enquanto briga por direitos que ferem o desenvolvimento da vida. Talvez tenha se esquecido que dela depende a perpetuação da coletividade na sua mais mágica, bela e importante expressão: o dom da vida.
==========================================================================
Fique você sabendo que o Céu não existe
                              
“Você vai morrer e não vai pro céu. É bom aprender: a vida é cruel”,
Homem Primata (Titãs)
 

“Se tem uma coisa da qual eu desgosto a cada dia é gente”, disse o meu interlocutor, claramente emotivo, visivelmente afetado pela bile, supostamente obnubilado pelo coquetel de drogas despejadas dentro da sua veia pela equipe médica. Para muitos uma falácia, ele dizia aquilo como uma espécie de válvula de escape. Fazia um desabafo dos mais crus e primitivos, enquanto o médico repetia a aferição dos níveis pressóricos que até agorinha mesmo encontravam-se às tampas. O sangue ferveu por conta de um entrevero com um funcionário da sua empresa. Saiu do fórum direto para a enfermaria.
“Vou começar do início”, ele disse redundante. Contou que o sujeito batera à sua porta com uma mão na frente e outra atrás, que é como se diz quando se está na pindaíba, na quebradeira, no sufoco, na pior das situações do ponto de vista financeiro. Mesmo sem possuir referências seguras do estranho que reivindicava emprego pelo amor de Deus, ele julgou que havia sinceridade e o contratou. “Pensei comigo: bandido não procura emprego formal...”, admitiu o erro de julgamento, sem se lembrar que gangsteres, deputados e outros meliantes trabalham de sol a sol para se garantirem.
Com o apagão de mão de obra por que passa o país, não poderia dar-se ao luxo de tantas exigências burocráticas. Então, catou o sujeito que há três dias não comia. O homem devorou um prato de comida como se fora o último da sua vida. Fazia dó, pois o novato faminto fungava, lacrimejava os olhos, fazia pausas enquanto mastigava, levantava as mãos para o alto e orava: “Deus lhe pague, Deus lhe pague”.
Os primeiros três meses de trabalho foram de puro êxtase para o patrão. Afinal, o sujeito tinha um comportamento irrepreensível, cumprindo à risca o horário de trabalho, executando as funções combinadas com o esmero de um veterano. Olhando assim de longe dava pra jurar que aquele homem estava realmente “vestindo a camisa da empresa”, que é como diz quando uma pessoa trabalha com gana.
Mas, em se tratando de seres humanos, esta praga perniciosa que manda no planeta, nada como um dia após o outro. Passado o chamado Período da Experiência, uma espécie de fase probatória em que o indivíduo aparenta ter nascido praquilo e ser “o cara”, o encanto começou a fenecer, e o novato disparou a ratear. Não que ele fosse um motor, porque pessoas não são motores, embora muitas delas sejam tão bitoladas quando um virabrequim, ou tão sujas quanto uma engrenagem. É que o sujeito relaxou no jogo de cena e passou a demonstrar “o seu verdadeiro eu”, como diria um guru vendedor de livros de autoajuda.
Então passou a chegar atrasado, a trazer Atestados Médicos fajutos emitidos pela vizinha que trabalhava num hospital, a difamar a empresa, a reclamar do tempero da comida e da falta de variedade do cardápio, a sabotar máquinas e equipamentos, enfim, a importunar a vida de todo mundo que pelejava dentro daquela indústria.
Chamado à sala da Presidência para um conversa ao estilo olhos nos olhos, o empregado disse ao patrão que andava mesmo chateado nos últimos tempos: “Perdi a alegria de trabalhar dentro desta empresa”, ele declarou com a voz empostada como se fosse um jogador de futebol dando entrevista coletiva. Ele chegou à conclusão que precisava urgentemente ser mandado embora. Deu pra entender?
Estarrecido com o rumo que a conversa estava tomando, se era tão simples quanto parecia, o velho empresário quis saber por que ele simplesmente não pedia demissão e cascava fora dali de uma vez para sempre (Perguntou com jeitinho, não com estas palavras, que era pra não correr o risco de ofender o folgado. Hoje em dia, vocês sabem, o que tem de gente solicitando indenização por danos morais está uma imoralidade).
O sujeito alegou que precisava muito da grana do acerto para dar entrada na compra de uma moto. Além disto, com o adjutório do Seguro Desemprego, ficaria liberado para fazer uns bicos na clandestinidade e ganhar dos dois lados. E pra terminar, era o seguinte: se o patrão não o demitisse, faria corpo mole, continuaria trabalhando com o freio de mão puxado, enfim, que ninguém daquela empresa contasse mais com a sua boa vontade daquele dia em diante.
Àquela altura do colérico relatório, o médico interrompeu a nossa conversa e solicitou à vitaminada enfermeira um pouco mais do remedinho sublingual para abaixar a pressão que se encontrava nas grimpas. A lembrança daquele colóquio fazia jorrar adrenalina no sangue do meu amigo empresário, agitando suas artérias.
Então ele continuou a estória, deixando claro o quanto se sentiu ultrajado, o quanto desejaria dar um tiro no atrevido, embora jamais possuísse porte de arma, nem arma, nem habilidade, maldade, raiva e coragem suficientes para disparar um gatilho. Modo de dizer. Só isso.
“Fique sabendo você que o céu não existe, meu chapa!”, foi o máximo de agressividade que conseguiu demonstrar. Disse aquilo como se revelasse a uma criancinha que Papai Noel era pura enganação. Ora, nos loucos dias de hoje, tão logo abandona as fraldas, as crianças aprendem a manusear vídeogueimes, a acessar a internet, a manipular os pais idiotas, quem dirá, a desacreditar no bom velhinho. Foi, portanto, uma estratégia ingênua e ineficaz do velhote.
Pois então. Como sabia que o sujeito fazia o estilo religioso inveterado, embora, na prática, fosse um calhorda que cria demasiadamente em Deus, numa última cartada supôs que geraria algum tipo de remorso, e resgataria o funcionário raçudo dos primórdios.
O sujeito não se abalou com a revelação herege pseudo-mediúnica. Saiu da sala, tirou o uniforme e só se encontrariam novamente na corte da Justiça do Trabalho. A não ser pelo irrelevante dilema quanto à existência ou não de céus e infernos, a ação terminou num acordo entre as partes.
Já a vida segue repleta de dúvidas e desacordos que parecem infinitos. E não tem isordil sublingual que dê jeito nisto. Que fragilidade.
==========================================================================
Morte: um fenômeno irritante
                              
“Ei, dor, eu não te escuto mais. Você não me leva a nada”,
“Ah, arrá, o terror vai começar! Uh, vai morrer! Uh, vai morrer!”

 

Por ser ofício invulgar, segurar em alça de caixão, conduzir inanimados definitivos para as catacumbas não deveria jamais se prestar ao regozijo de puxa-sacos e dos baba-ovos. Mas acontece. Eu sei que acontece. Dependendo da importância do defunto, seja ela patrimonial, cultural ou política — principalmente, neste último caso — os aproveitadores de acotovelam para conduzir o pobre diabo pra dentro do buraco. Se pudesse, se o coisa-ruim me acenasse o  seu tridente da escuridão da terra, eu sim os empurraria todos para o vazio da cova.
Sucedeu que o sujeito apagou aos 93 anos de idade, apesar dos cigarros de palha, da aguardente e carne de lata. Viveu pra dedéu e o povo da região garantia: era, sim, um homem de bem. Nasceu, cresceu, casou e procriou na roça, no mesmo casarão antigo em que seu pai e o pai do seu pai também nasceram, viveram e sumiram. Naquelas bandas, nunca se ouviu um só fato que o desabonasse. Ao contrário, era tido e havido como justo e correto, “apesar de namorador e aficionado pela pinga na sua mocidade”. O povão maledicente sempre cavouca, pesquisa ou inventa algum deslize no qual se arvorar para denegrir, nem que seja um pouquinho, a reputação de quem quer que seja. Maldadezinhas básicas. Coisas de ser humano.
Pois bem, acontece que o velho foi pego por uma gripe e terminou adoecendo profundamente. A moléstia evoluiu para uma pneumonia dupla (é assim que se diz vulgarmente quando a infecção atinge ambos os pulmões), que avançou para a tal infecção generalizada. Daí, vocês já sabem: o bicho pega, fica difícil escapulir da senhora da foice.
Atrasado algumas horas, acabei perdendo a hora agá, o dramático último suspiro no leito de morte. O espetáculo gasturento foi testemunhado e chorado pela esposa, com quem permaneceu casado durante quase setenta anos. Na plateia compulsória havia também as filhas. Mulheres, vocês sabem, são mais sensíveis e solidárias que os homens. Não é o que se diz? Na hora da dor, na hora do pega-pra-capá, chamem uma mulher. Pois então. Os inabaláveis senhores da prole oficiavam providências irrelevantes, como vender gado ao frigorífico, trocar os pneus da camioneta e checar os extratos bancários.
Contaram-me que, num esforço terminal, o velho fazendeiro pediu desculpas às filhas, aos filhos, à velha companheira, a todo mundo, enfim, por conta dos mal entendidos, do sofrimento, dos aborrecimentos involuntários ou não que ele pudesse ter provocado àquela gente. Não carecia tomar aquela precaução derradeira, até porque havia um quase nada a se relevar. Ao ouvir o apelo desesperado do moribundo, o núcleo familiar ali presente desabou de vez e chorou sentido, antevendo uma saudade imensurável.
Tratava-se de uma mixuruca cidade interiorana, de tal forma que a única igrejinha local ficou lotada de gente, um verdadeiro alvoroço ao redor do morto. A missa já tinha encerrado e o padre de sotaque esquisito, sem muitas delongas, sem muitos versículos, sem muita paciência com aqueles pobres diabos, como sói ocorre aos padres, abençoou o rebanho e cascou foraem sua Kombirepleta de hóstias: havia ainda um batizado e um casamento na roça naquele mesmo dia.
Era chegada a hora de lacrar a urna. A tampa de jacarandá pesada desceu. O povo curioso chegou mais perto, ficou mais junto. A parentalha debulhou-seem lágrimas. Algunscrentes mais fanáticos despencaram da própria altura, desmaiaram, cederam à histeria, dando show e trabalho adicional ao único doutor médico que atendia naquelas paragens. A esposa velha, senhora octogenária, seca de tanto chorar uma madrugada inteira, encostou a fronte franzida no caixote, a questionar o Bom Deus como é que faria pra seguir vivendo sem a companhia daquele querido.
O baú foi lacrado. Alguém trouxe uma coroa de flores improvisada, vulgar e depositou sobre o recipiente sórdido. Ocorreu então o momento mais emocionante daquele funeral. Seis companheiros, camaradas das antigas (é assim que se diz dos amigos velhos de guerra), pediram licença aos familiares e ao povo que estorvava a passagem. Apesar da musculatura debilitada pela senilidade, cada qual agarrou numa beirada. Olhando assim de longe, a cena era peculiar porque o sexteto primava pela cabeleira branca e bem tosada.
Seis homens velhos, de saúde precária, puxaram o cortejo até o Cemitério Municipal. Foi bonito de ver a multidão dobrando a esquina, com aqueles homenzinhos de cabeça branca espetados de entremeio. Funeral é sempre uma merda, mas aquele foi-me mais didático que o habitual.
É por isto que eu penso: alça de caixão não é instrumento de qualquer um. Que ninguém se ocupe neste ofício só para impressionar ou fazer bonito. Morte não é brinquedo. Morte é dor, saudade, um dos fenômenos naturais mais dramáticos e irritantes ao sempre ignóbil ser humano. Esta crônica é um singelo tributo ao Jairo, meu avô.
==========================================================================
Sim. Deus existe
                             
Crer ou não crer eis a questão? Meu amigo, até mesmo a descrença é uma forma de crença. Quando instalamos nossas bases em terrenos instáveis como o da fé, estamos enveredando por um caminho muitas vezes obscuro, que, em muitos casos, não tarda em flertar com o fundamentalismo. Esteja ele voltado ao teísmo ou ao ateísmo. 
Nasci em família espírita (não confundir com as religiões afro-brasileiras). Aos 14 anos impliquei com minha mãe que queria que eu fizesse primeira comunhão. E fiz. No catecismo, não concordava com nada do que a professora dizia, mas não a aborrecia. Chegou o dia da cerimônia e carreguei toda feliz a minha vela e confessei ao padre, muito envergonhada, os meus pecados de moça pura. Eu queria ser aceita no meu grupo social de maioria católica. Foi quando percebi que a religião era uma forma de sociabilização. 
Um pouco mais adiante, me converti ao Universalismo Estelar. Uma religião que eu mesma inventei. Sou fundadora, pastora e única fiel. Infelizmente, dileto leitor, mesmo que você se interesse por essa religião, o único dogma que ela carrega é permanecer para sempre individualizada em mim. Não haverá outros fiéis que não eu mesma. A espiritualidade é algo muito singular. 
No Universalismo Estelar não há outra compreensão do mundo que não o pensar e a lógica. Evidências empíricas são muito bem vindas, mas nunca analisadas de forma derradeira. Há sempre mais a aprender. Sentada em meu altar, envolta por livros, um dia me deparei com a causalidade. A relação entre causa e efeito e tudo o que envolve a sua inteligibilidade. Desde então, adotei certas posturas quanto às visões ateístas e teístas. 
Deus, para o Universalismo Estelar, é a causa primeira. Como o ônus da prova é de quem acusa, convido o leitor a pensar comigo. Veja, se todo efeito possui uma causa, qual seria a causa do Universo? Poderíamos responder “deus”. Muitos ateus perguntariam: “Mas qual a causa de deus?”, para o que a resposta seria: todo efeito tem uma causa e não toda causa tem uma causa. Partindo desse princípio, poderíamos vislumbrar uma série de características para esse “deus”, tais como: atemporal, eterno, inteligente. Quanto à questão da inteligência, como acreditar que todos os processos físicos e químicos do universo, a complexidade dos corpos, seus pormenores funcionais, a gravidade, os astros e tudo mais que nos circunda, foram todos decorrentes de um acaso, ou da sorte? “Sorte” essa que faz do processo universal um exemplo de sucesso há pelo menos 13,7 bilhões de anos. Seria preciso muita fé. 
Alguns argumentarão que a complexidade que vemos hoje é fruto de uma incalculável quantia de tempo e que por meio da seleção natural a evolução privilegiou os fenótipos mais agraciados. Ora, se a seleção natural tem a capacidade de operacionalizar um processo privilegiando aquilo que favorece a vida, então seria ilógico afirmar que não existe aí um processo inteligente. Além do que temos toda a composição genética como base intrínseca desse decurso, de forma que atribuir ao acaso o funcionamento dessas ferramentas naturais me parece tão pueril quanto comparar a ideia da existência de algo como “deus” à ideia da existência de unicórnios e dragões invisíveis na garagem. 
Qual o trabalho científico que provou o materialismo? Você vê a matéria ou apenas a luz refletida nela? Estamos andando sobre matéria ou flutuando devido à repulsão eletrostática? A matéria é invisível e intangível e ainda assim convertemos o nosso pensamento em niilismos incabíveis. Nem mesmo a ausência de luz pode fazer de nós seres sombrios se essa não for a nossa decisão, se não for da nossa vontade, porque independentemente da matéria nosso eu pode e deve controlar o rumo do nosso comportamento. Entregar-se à inércia mental apenas conturba ainda mais o mundo a nossa volta. 
Quanto às bases éticas do Universalismo Estelar, elas também são cerceadas pela observação e pelo pensamento. A ética conforme o entendimento dos gregos era definida por dois sentidos complementares: a interioridade do ato humano (a intenção) e os hábitos e costumes. Da observação, bem como obviamente da leitura da moral ensinada pelas incontáveis religiões que nos cercam, podemos aprender qual a melhor forma de interação com o outro. É um processo individual voltado para o coletivo. Conhece-te a ti mesmo, ama-te e depois ama teu próximo. 
Como todas as outras religiões, acredito que um dia o Universalismo Estelar será extinto e a espiritualidade será realmente compartilhada sem precisar se alimentar da hipocrisia presente. Se continuarmos tendo a “sorte” que temos e o universo não estiver na iminência de se extinguir por algum erro de cálculo do “acaso”, creio que chegaremos a um tempo onde a habilidade em esculpir uma Pietà será tão comum quanto a que temos hoje de deixar que os outros pensem por nós.
-=========================================================================
O medo de morrer nos mata por antecipação
                             
Sketch for The Death of Sardanapalus, de Eugene Delacroix

Toda atividade humana tem como função básica livrar-se das garras da morte. É para não morrer que a gente dorme, que a gente se levanta, que a gente ama, que a gente estuda, trabalha, xinga, blasfema, reza ladainhas, faz discurso na praça, arruma um ponto de mínimo conforto nas engrenagens da sociedade e acaba por constituir um diferencial, uma persona, uma identidade única no meio de tantas criaturas semelhantes. A morte é a alavanca propulsora de toda energia vital.  
 
Para não morrer, você se converte a uma fé supostamente redentora e se dobra diante de um Deus furtivo. Passa a agir, não por si mesmo, mas pelo índex do que pode e do que não pode, segundo os dogmas de sua seita, na fervorosa ilusão de que morrendo fisicamente na fé haverá de ressurgir eternamente na graça do Deus glorificado. Em outras palavras: por medo de morrer, você acaba morrendo um pouco por antecipação.
 
Para não morrer, você espreme os miolos até encontrar uma ideia genial e inventar um treco sui generis que caia no agrado do consumidor e vá vender feito pão fresco às três da tarde. E a venda dessa coisa há de deixá-lo podre de rico (que podre de pobre não tem o poder de afugentar a morte) de tal sorte que possa encomendar o iate mais longo do mundo, possa arrumar para deleite as pessoas mais cobiçosas que possa haver, comprar a mansão com cômodos a sumir de vista (ainda que seu corpo para desfrutá-la seja um só) juntar na extensão da garagem os carros mais desejados da terra, mesmo que você jamais terá tempo de se sentar no cockpit de um bólido desses e ziguezaguear pelas ruas do bairro ou pegar um estrada sem rumos e curtir a  paisagem na magia do entardecer.
 
Mas ao virem você movimentado com desenvoltura por entre tamanha tranqueira, as revistas de fofoca, as colunas de jornais e outras frívolas comunicações haverão de proclamar que você é um dos tais que venceu na vida e quem vence na vida tem a nítida sensação de haver afugentado a morte para o estrangeiro. Lembre-se. Para os dias de hoje, vencer na vida nada mais é do que juntar tranqueiras.      
 
Para não morrer, você se entulha de compromissos, cada um mais vazio do que o outro. No entanto, correndo assim de agenda cheia, terá a sensação de elevada importância nos acontecimentos sociais. E quem está tão cheio de compromissos e ocupações não será por certo agredido pela foice da morte. Ou porque você é muito importante para ser suprimido do quadro dos acontecimentos, ou porque você se distrai da “indesejada das gentes” e, uma vez se achando distraído, ela poderá até se esquecer de você. Ou você não é daqueles que pensam que o acaso vai lhe proteger enquanto andar distraído?   
 
Para não morrer, você se acasala e constitui prole, e espera dela, no esgalhamento, que venham netos, bisnetos e tudo o mais. E assim na sucessão das gerações, na memória daqueles que de você provêm, haverá de permanecer vivo, como um fantasma precursor, já sem carne, já sem ossos, já refeito, ou melhor, quase desfeito, na vaga lembrança dos descendentes. Porque uma vida só não lhe é bastante. É preciso se esticar para marcar fortemente sua passagem no mundo. 
 
Para não morrer é que você espreme seu cérebro já constipado pelo tempo e pelo mau uso, buscando algumas gotas que possam expressar o inexpressável, aquilo que se sente num leve vagar, mas que a palavra se furta a construir um sentido minimamente palatável, diante da confusão de tanta coisa, de um mundo fracionado e quebradiço, que não se deixa ser abarcado por uma noção de sentido.  
 
Para não morrer, você se imiscui nas entidades sociais, classistas ou culturais e exigem que lhe ergam bustos, que lhe afixem retratos nos murais, que lhe atribuam nomes de auditórios, bibliotecas, ruas e logradouros, até que de você mesmo ninguém se lembre mais, no entanto seu nome permaneça ali, numa lembrança deslembrada, numa forma precária de não estar morto, gozando do mais vivo “anonimato público”. 
 
Tudo para fugir da morte. 
==========================================================================
Como derrubei duas torpes gêmeas no dia 11 de setembro
                             
Ocorreram inúmeras manifestações no planeta no dia 11 de setembro de 2011, data em que se reverenciaram os 10 anos desde o ataque formidavelmente morticida ao World Trade Center, quando aviões lotados de gente e raiva foram arremessados contra as Torres Gêmeas.
As cenas incríveis das aeronaves penetrando nas torres, como se elas fossem de pudim, são as mais contundentes que eu já vi, desde que um útero revolto em cólicas expeliu-me do seguro arcabouço materno para me apresentar, a muito contragosto, as agruras do mundo. Há dez anos, eu imaginei que seria a deflagração da nossa última guerra mundial. Mas a estúpida saga do Homem na Terra não encerrava ali. 
Ao homenagear as vítimas do massacre binladesco, muitas lágrimas rolaram em rostos convulsionados de saudade, mas houve também quem comemorasse a data com danças, bebidas e rajadas de metralhadora, como se fora um 04 de julho às avessas.
Não. A estória que passo a descrever a seguir não se trata de mais um devaneio de cronista sem inspiração plausível, ou um desagravo à miséria humana, aos que foram soterrados vivos em Nova Iorque, às famílias enlutadas, aos vultosos danos materiais do Pentágono ou à impensável crise financeira norteamericana advinda ao ataque. Tampouco foi psicografada a partir dos depoimentos fantasmas de Obama Bin Laden, ou melhor, Osama Bin Laden (eu sempre a me atrapalhar com obamas e osamas...).
Até porque, ignóbil assumido do tema (e pouco interessado em respostas ao enigma da existência), eu suponho que nenhuma criatura bípede razoavelmente sensitiva submeteria os seus atributos mediúnicos unicamente ao cargo das declarações revanchistas de um facínora.
Quem me contou o fato ocorrido, com indisfarçável orgulho nos lábios e nos gestos, foi o Belaminho, um cinquentão que trabalha (?) como assessor de um famoso parlamentar em Brasília. Apesar do limitadíssimo grau de conhecimento mútuo, o sujeito sentiu-se deveras à vontade (na verdade, ele sempre me parece embriagado) para relatar a orgia impetrada numa mansão do Lago Sul, tim-tim por tim-tim, como sói ocorre aos fanfarrões que se regozijam com as próprias aventuras sexuais, geralmente proibitivas, de acordo com os padrões morais da maioria da sociedade. Mentir é também uma imoralidade, mas não duvido nem um pouco do relato daquele falastrão.
Convidados por um grupo de lobistas (lobos em pele de homem que espreitam o Poder), o deputado e seus assessores (somente aqueles do sexo masculino, é claro) foram se divertir com um seleto grupo de jovens modelos universitárias (mais conhecidas, na minha época, como prostitutas) num sobradão suntuoso, corriqueiramente alugado pelo grupo de empresários para convencer parlamentares linha-dura, ou mesmo, adular, proporcionar algum recreio aos já alinhados.
Forçando a amizade (é como se diz, coloquialmente, quando alguém pede a outro alguém algo sabidamente fora do razoável), Belaminho inspirou-se na tragédia de 11 de setembro, data escolhida por Bin Laden para afrontar a Humanidade (e pelos lobistas do Planalto para bajular aqueles engravatados antiéticos), para pedir o inimaginável: queria duas gêmeas esguias com as quais se divertir na suíte nº 11, se possível, às 11 horas da noite, com uísque 12 anos, viagra à disposição, além de alguns gramas de pó, que era pra dar um grau nas moças (palavras usadas pelo próprio Belaminho, como se ele se referisse a polvilho ou outro ingrediente culinário). 
Para se conseguir um voto favorável em plenário (principalmente se ele não for secreto), tem gente que faz de tudo, inclusive coisas secretíssimas. Houve alguma correria de última hora para se angariar as tais gêmeas desinibidas no Plano Piloto, mas — vocês sabem muito bem — existem pouquíssimas coisas neste mundo que o dinheiro não compra, ainda mais contando com o apoio diuturno das cafetinas do alto escalão. A desvantagem é que se fica preso às suas agendas. Malandros irritam-se absurdo com chantagens.
Belaminho embarcou a patroa no aeroporto e teve as duas gêmeas ao seu dispor, conforme a encomenda. Ambas tombaram sobre o cetim da cama quingue-saize. Sentindo-me o próprio quingue do DF (“quando se tem grana e poder, parece que a gente é Deus”, ele enfatizou, sem a menor necessidade, sem que ao menos eu demonstrasse qualquer interesse naquela fantasia pra lá de sórdida), o assessor despachou com as contribuintes a noite inteira.
Na tarde do dia seguinte, o projeto passou com folga, em primeira votação, no plenário da Câmara. E viveram todos temporariamente felizes para sempre: Belaminho, seus colegas de gabinete, o ilustre deputado, os lobistas (lobos carniceiros), os empresários investidores, as gêmeas e grande elenco de vadias. Quem se fodeu pra valer, no mau sentido, foi só o eleitorado
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário